Quando consigo, finalmente, silenciar as tormentas da minha mente, algumas cenas voltam a preencher os meus sentidos e me perco mais uma vez. Todas as vezes que fecho meus olhos, lembro-me das mãos do meu avô segurando as minhas clamando por liberdade. Essa, até então, era a cena que eu mais temia em lembrar: sentir suas mãos nas minhas, ver seus lábios sem conseguir pronunciar palavras e os teus olhos lacrimejando pela cura que eu não conseguia encontrar para ele. É impossível não se lembrar deste momento de dor e não sentir saudade da vitalidade e vontade de viver do meu avô. Mas, apesar de não apagar esta cena da minha memória, eu ainda sei superar. Eu sei que, apesar de saber que nunca estarei pronta para perder as pessoas que eu amo, a vida sempre acaba. Independente de crenças e de vida-após-a-morte, a vida acaba. Eu pensei que nunca mais pudesse ter uma cena impossível de se esquecer como esta. É claro que já vivenciei outros pesares, tanto adeus e até-nunca-mais. Mas, nada irá superar (se é que existe algo a ser superado) da cena que presenciei ontem. Ver meu pai caído e perdido no começo da escada de casa tem sido algo rotineiro, nos últimos meses. Talvez seja por isso que não trocamos mais palavras: ele não se lembra da vida e eu não me esqueço das minhas mágoas. Eu já tentei aceitar a condição de que a bebida destrói famílias, corrompe os sonhos e minimiza a vida. Mas, por que abalar os dias de que não "tem nada a ver com isso?" Eu, simplesmente, não sei explicar. Sempre me culpei pela bebida que meu pai ingere diariamente. Sempre me culpei por ser essa pessoa fria que não sabe expressar o que sente quiçá demonstrar seu amor pelas pessoas. Sempre me culpei por não ter nascido do jeito que ele esperava que eu fosse. Mas, eu sempre tentei compensar. Sempre tentei ser uma mulher decente, de caráter e de valores para que ele pudesse se orgulhar de mim. Sempre tentei seguir as regras de casa, sem sair pela tangente ou desviar os caminhos. Talvez ele tenha piorado por minha causa. Talvez ele tenha caído no ponto de ônibus ontem por minha causa. Eu não sei dizer por que as pessoas bebem e não conseguem parar. Porque pessoas com tudo nas mãos e um caminho lindo pela frente não conseguem recusar uma dose. Eu queria poder entender as mazelas que se passam no coração do meu pai que expliquem o motivo dele beber todos os dias. Que expliquem porque a bebida é tão mais importante do que a sua própria vida. As pessoas me julgam pelo rancor que sinto do meu pai. Que pais devem ser vistos como heróis e homem-mais-importante-da-nossa-vida. É tão difícil esquecer os desacatos dele. É tão difícil esquecer seu cheiro de pinga. É tão difícil, céus! Agora, algo mais impossível de se esquecer ficará preso em meus dias: ter visto meu pai ser carregado pra dentro de casa pela minha mãe. Logo por ela. Ela que sempre fez de tudo por ele - e por nós. Que sempre viu o amanhã como uma possibilidade de mudança. Logo ela que sempre superou as dores que ele causou em nós. Logo minha mãe que sempre lutou pra que ele tivesse uma vida digna de ser vivida. Eu tento pensar em outras coisas, mas a cena do meu pai sendo carregado por ela ficará no meu peito, nas minhas lembranças e no meu pesar. Lembrar do rosto dela, chorando pelo homem que não conseguiu salvar. Lembrar de seus soluços e de suas mãos trêmulas de medo, de cansaço e, de certa forma, de perda. Lembrar da luta que não conseguimos vencer. Lembrar da sua angústia em ver o seu amor derrotado pelas próprias escolhas. Eu sei que ainda estamos na metade do caminho e que, talvez, um dia, a história possa ser diferente. Talvez, tudo acabe e volte a ser como era antes. Talvez, tudo acabe de maneira trágica e dolorosa para nós. Eu só queria não ter vivido essa cena. Eu só queria não ter visto os olhos verdes do meu pai perdidos em segundos que ele mesmo não sabia que estavam passando. Eu só queria não ter o visto perder o equilíbrio diante das pessoas que mais o amaram. Eu só queria não ter visto os ferimentos no seu rosto, em seus braços e pernas. Eu só queria fechar os olhos e poder me lembrar de como ele era na minha infância – apenas, e só ele, o meu bem querer.
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Grande mentirosa, mais besta que a besta e dona de um coração “viciado em amar errado”.
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