sobre o destino de mais uma dose;



Quando meu pai começou a voltar para a casa mais tarde que o normal, minha ficha começou a cair. Eu não entendia porque um auxiliar administrativo precisava ficar mais do que 10 horas dentro de um escritório, mas como eu não sabia muito bem do que se tratava a função muito menos a vida, eu apenas aceitava. Esperava por ele como alguém espera por uma notícia boa. Eu realmente esperava por ele como se fizesse anos que eu não o via. Minha relação com ele trouxe isso pro meu coração: a necessidade de tê-lo sempre por perto, já que ele era o cara que não me julgava, não brigava e, quiçá, aumentava a voz. Diferente da minha mãe que, apesar de todo o esforço para com a minha educação e para eu ser alguém hoje, sempre me menosprezava em algum momento da vida. Tanto faz, naquela época não fazia diferença. Eu era uma criança entrando na adolescência que adorava ler os livros que meu pai me trazia (sempre por mérito), que desenhava o contorno das mãos e dançava ao som de Edson Cordeiro como se não houvesse o amanhã. Eu lembro dele voltando pra casa diferente, trançando as pernas e não falando nada com nada. Aos poucos, aquilo foi se fazendo cada vez mais presente na rotina da nossa família, que sempre foi nós três. Eu ainda não entendia que por trás do meu pai, do cara loiro, alto, dos olhos verdes e dos dentes branquinhos, havia algo que o nutria e o destruía ao mesmo tempo. Foi quando as brigas começaram a ser frequentes. Minha mãe sempre amou o meu pai, e acho que vise-versa. E eu não lembro deles se insultando ou qualquer coisa do tipo antes disso. Na minha humilde visão, eles eram um casal que enfrentava, sim, os problemas da vida, mas que sabiam passar por cima disso. Eu não consigo lembrar, exatamente, quando tudo veio à tona. Mas, lembro perfeitamente do dia que minha mãe disse: vou buscar seu pai no bar. Nesse ponto, eu acho que ela não começou a aguentar vê-lo chegar tão tarde e a mudar a essência dele. Foi quando eu me toquei que meu pai não aguentava viver longe do álcool. Eu sempre achei que ele bebia "socialmente", como os outros homens do restante da família, em aniversários ou reuniões familiares. Eu achava que o álcool era só um pretexto para fazê-lo rir. No fundo, essa premissa deve ser realmente válida. Com o passar dos anos, as doses aumentaram. A ausência doeu muito no meu peito. Meu pai não era mais o mesmo. Chegava em casa e mal me olhava. Mal me abraçava. E ainda me lançava palavras e olhares de ódio. Isso sem contar em relação à minha mãe. Na verdade, essas brigas entre eles começaram a aumentar. E eu, filha única, sempre tendo que me lançar na frente da minha mãe para ela não cometer uma besteira. Desde os meus 11 anos, eu segurei minha mãe pra não enforcar, arranhar e bater no meu pai. Não por defendê-lo, mas por querer que a mente e o espírito dela ficassem intactos. Sempre quis preservá-la da dor, embora ela mesma me causasse tanto em outros momentos do dia. Sempre achei que minha mãe fazia de tudo, de tudo mesmo, pelo meu pai. Na verdade, nós sempre fizemos de tudo por ele. Sempre tentamos mostrar pra ele que a vida podia sim, ser muito melhor. Que ele tinha um futuro lindo pela frente, com pessoas ao redor dele que o amavam e o queriam por perto. Mas, ele nunca levou isso em consideração. Têm quem me diga que foi culpa do álcool, que ele não conseguiu enxergar as coisas boas da vida por causa da bebida. Eu discordo totalmente. Meu pai sabia, por exemplo, que não podia beber em dias que teria reunião no dia seguinte. Ou quando fosse pegar o volante para algum passeio de final de semana. Mas, depois dos meus 15 anos, ele não se importava com isso. Bebia até cair. Até cair, realmente. Quantas vezes eu o peguei pelos braços, com aquele peso todo, e o levei pra dentro de casa? Quantas vezes fui buscá-lo correndo no portão de casa para minha mãe não chegar do trabalho e encontrar essa cena? Quantas vezes meu pai me xingou por eu querer ajudá-lo? Quantas vezes ele caiu de bêbado na frente das pessoas? Quantas vezes ele nos deixou no meio do nada porque queria beber mais umas doses? Acho que nem eu mesma sei contar... Nesse meio tempo, há quem diga que nós não fizemos nada por ele. Que ignoramos o fato dele beber. Minha mãe, sim. Por sempre acreditar que ele podia mudar. Que ele trocaria a bebida por nós. Mas isso nunca aconteceu. Meu pai nunca aceitou que bebia. Ele nunca aceitou que precisava de ajuda. E acho que o ápice disto foi em 2009, quando ele começou a voltar machucado pra casa. Neste ano, o ano novo ele não passou conosco. Em 23 anos que vivo neste mundo, foi a primeira vez que ele não passou o ano novo conosco. Preferiu ficar na cama, bêbado e encarcerado. foi um desastre. Foi neste dia que percebi que ele nunca mais seria o mesmo. Que eu nunca mais veria meu pai voltar do trabalho com a mesma alegria de quando eu era criança. Foi quando paramos de conversar, definitivamente. Eu, de fato, nunca aceitei. Nunca vou aceitar o que a bebida fez com ele. Tornou-o um homem que lança desacatos em compasso avançado para sua família. Que humilha as pessoas com palavras de dor. Nunca vou aceitar a figura do meu pai se desfazendo por causa de uma bebida. Talvez, um dia isso passe. Mas, agora, enquanto ele luta pela sobrevivência, eu apenas finjo que não vejo. E a vida, tão irônica, fez com que, anos mais tarde, ele precisasse de mim para ir ao médico. Precisou ir porque não se aguentava mais em pé. Porque estava puro osso, amarelado e fraco. Cirrose. É isso que meu pai tem. Cirrose em estado avançado sem chances, nem expectativas, de cura e sobrevivência, respectivamente. Trancafiado em casa, toma 10 comprimidos por dia. Faz uma dieta específica. Precisa ter alguém olhando 24 horas para que ele não caia em tentação e prolongue um pouco mais a vida. Cada dia é um parto. Cada dia eu canso um pouco mais e tenho menos paciência. Eu não sei até quando o meu pai vai aguentar ficar sem álcool. Eu não sei até quando meu pai vai continuar aqui. Quando o médico veio conversar comigo de que ele não tinha mais tempo de vida, minha infância inteira veio na minha mente. De como meu pai foi um bom pai. Lembro do seu tênis all star preto, o corpo magro e aquele bigode que eu adorava. Meu pai era um bom pai. Eu lembro da sua alegria ao me levar todo sábado para o zoológico perto de casa, só porque eu amava ver aquele leão que mal levantava. Ele me apoiava na grade para que eu o chamasse, e eu dizia: "Pai, acho que ele não gosta de mim". E, ele, morrendo de rir por dentro só pra dizer "Como não gostar de você, meu docinho?". Eu lembro de passar a noite inteira montando quebra-cabeça com ele. Eu ainda lembro quando ele saia de madrugada pra trabalhar e da minha mãe tampando os meus ouvidos para eu não chorar, porque eu não queria outra pessoa que não fosse ele. Eu lembro quando ele cantava Mamonas Assassinas para me fazer sorrir. Quando voltamos para cá, lembro da gente andando na rua de mãos dadas e eu perguntando do que a sombra era feita. E ele sempre dizia: "É feita de você, meu docinho". Eu lembro de ficar deitada na cama dele pulando igual pipoca pra ele falar as cidades e os estados brasileiros, porque eu achava lindo ele saber geografia. Eu lembro de não conseguir dormir enquanto ele não me ouvisse contar a história da branca de neve, que ele dizia ser "docinho de neve". Lembro de como ele se importava comigo, com o meu bem-estar e com as pessoas ao seu redor. De como eu o amava e o esperava. Agora, só consigo pensar em como a vida é tão pequena e tão rápida.

No fundo, eu só queria que meu pai nunca tivesse que precisar tomar sua dose. Eu só queria que meu pai voltasse pra casa e fosse apenas, e só apenas, meu pai. Queria que o tempo nunca tivesse feito isso, que a vida não tivesse sido tão injusta pra ele - e para nós. Eu só queria continuar lembrando de seus olhos verdes sem o veneno da raça. Na verdade, eu só queria deitar na cama dele e dormir em seus braços sabendo que ali era o melhor lugar do mundo. Agora, só quero esquecer minhas mágoas e superar meu rancor pra que, apesar da dificuldade em fazê-lo superar a abstinência, ele tenha uma despedida feliz. E em paz.

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