Quando meu pai foi diagnosticado com cirrose em estágio final e degenerativo, eu meio que esperava. O que eu não estava, digamos, pronta era para enfrentar as mazelas que este diagnóstico poderiam trazer para a minha vida. Muito além disto: para a minha mente e coração. Nunca foi fácil entender o motivo pelo qual meu pai bebeu a primeira pinga, no auge dos seus 13 anos. Antes, eu achava que a culpa fosse minha (embora essa culpa, em certos dias, ainda aparece sorrateira em meus pensamentos). Mas de quem foi a culpa, afinal? Da mãe dele que disse que ele não era filho dela (por conta de ser filho adotivo) ou por conta do seu pai ter sido um pai de merda para ele? A culpa foi da minha mãe que sempre protegeu, ignorou e entendeu os seus porres diários? A culpa foi do universo não ter colaborado para que ele tivesse uma vida digna e feliz? Na verdade, eu nunca irei entender. Nunca irei entender o motivo pelo qual uma dose de cachaça batizada é mais valiosa do que uma dose de amor de filha e esposa. Nunca vou entender o porquê de uma dose de pinga barata ser mais importante do que um Natal junto com as pessoas que lhe amam. Talvez ainda não seja a hora de eu entender este e todos os questionamentos que faço diariamente. É tão difícil olhar meu pai hoje. É difícil olhar para um cara que em seis meses perdeu quase 80 quilos por conta da abstinência e da cirrose. Meu pai não consegue mais falar, não consegue andar sem se curvar, não consegue segurar um talher sem tremer. Meu pai, as vezes, me olha nos olhos e demora horas para dizer o que ele costumava dizer "Oi meu docinho". No fundo, eu tenho raiva. Tenho raiva de como tudo aconteceu. Eu nasci, ficava mais com o meu pai do que com a minha mãe, dormia só no colo dele, andava todo sábado no zoológico no seu colo, deitava na sua cama só para ouvir os nomes dos estados brasileiros. Eu cresci, ele me comprava livros para me fazer gostar de literatura, ficava horas deitada em sua cama para fazer nossas brincadeiras e cosquinhas, assistia fórmula 1 todos os domingos, e era feliz. Continue crescendo, e meu pai já não me tratava bem, preferia a pinga, estava sempre no bar, e quando estava em casa, estava bebado e encarcerado no seu mundo louco. É disso que tenho raiva. De como meu pai, o cara bonito dos olhos verdes, das camisetas de banda e do all star preto, se transformou num sujeito sujo, jogado pelas sarjetas e todo ensaguentado por cair sempre que tentava voltar para casa. Por mais que eu tente, é difícil entender porque ele. Porque meu pai teve que mudar. Porque meu pai parou de ser meu pai. Porque a pinga foi mais importante. Porque ele parou de ver as corridas e jogos de futebol comigo. Porque ele ficava jogado na rua. É tanta dúvida, tanto receio e tanta dor que eu já não sei mais o que pensar. Ter que superar isso, dia após dia, para não brigar ou ficar irritada com ele tem sido uma provação imensa. Surgiu uma paciência sem igual. Tornei-me uma Ana Clara que eu jamais pensei que conseguiria ser: aquela que passa por cima das dores para não brigar, para não xingar. Aquela que mesmo com todas as mágoas, não consegue dormir de preocupação achando que seu pai não vai sobreviver até o dia do seu casamento. Por mais que minha vida tenha sido marcada por vexames, vergonhas e lágrimas em público por conta da bebedeira do meu pai, ele ainda é meu pai. O cara que sabia as normas da lingua portuguesa sem ter cursado graduação. O cara que sabia de política, música e geografia sem nunca ter acessado o Google. O cara que sentava todos os sábados a noite pra jogar algum jogo de tabuleiro comigo. O cara que foi meu pai. Por mais difícil que esteja sendo, por mais ódio que eu sinto da bebida como um todo e de tudo o que ela tirou de mim, eu ainda continuo sendo o docinho do meu pai.
Quem sou eu
Grande mentirosa, mais besta que a besta e dona de um coração “viciado em amar errado”.
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