Lembranças

Abro a torneira do chuveiro com a intenção de um banho rápido. A água cai fervente sobre meu couro cabeludo e eu não sinto nada. É como se todas as minhas lembranças virassem um filme muito bem produzido que vai lentamente tomando conta da minha mente, me fazendo viver tudo de novo. O medo me persegue. Eu já não consigo controlar essa sensação dentro de mim. Não é medo de uma agulha na hora da injeção ou medo de levar uma bronca no trabalho. É medo do tempo. Lembro-me muito bem quando ele começou. Foi exatamente da mesma maneira que eu me encontro agora. Minha mãe abria a torneira, já que mesmo na ponta dos pés eu não conseguia alcançá-la. Lembro das lágrimas salgando meus lábios e estes, tremendo como se estivesse tomando um banho frio na parte mais gelada do planeta. Foi neste dia que eu descobri o que era tempo. Eu tinha medo de quando minha mãe dizia estar cansada de tudo e soltava o que mais pedia pra não ouvir: "- Um dia vocês vão se ver livres de mim!". A sensação de vê-la saindo pela porta e nunca mais voltar, era a que eu mais temia. Depois de um certo tempo, passei a me acostumar (ou pelo menos tentar entender) que eram palavras "comuns" de mães para filhos. O medo pelo tempo ainda assombrava minha mente, todas as noites em claro, quando me via entre quatro paredes que pareciam me engolir cada segundo que custava a passar e que não me fazia pegar no sono. Fui me tocar novamente do meu medo quando a pessoa que eu mais amava encontrar aos finais de semana, a que mais demonstrava seu carinho e afeto por mim, me deixou sem dizer adeus. O meu medo maior naquela semana que Ela ficou longe era de que não conseguisse ler/ouvir o bilhete escrito esperançosamente: "Espero que melhore logo. Quero comer brigadeiro e te mostrar os pinheiros que me ensinou a pintar com um só tom de verde! Volta logo, beijoca". Esse medo de que minhas palavras não fossem lidas era o mesmo de perde-la sem dizer que seria a pessoa que mais sentiria falta. Eu não tive tempo de ler para Ela, mas soube que sorriu quando ouviu da boca de outra pessoa. Só consigo me lembrar das suas unhas sendo pintadas com um esmalte bem clarinho em seu leito de adeus. Ainda sinto seu cheiro de bolo. Foi neste dia tive medo das flores, porque sabia que elas A acompanhariam e Ela se incomodaria com seu cheiro depois de murchas em seu sonho eterno. Por outro lado, nunca tive medo do primeiro dia de aula, do primeiro amor ou do primeiro tombo desses degraus que a gente costuma subir durante a vida. Na verdade, acho que isso é receio, não medo. Não tive medo quando o amor da minha vida foi embora, se despedindo de mim com os olhos cheios de saudade e com as mãos trémulas de carinho. Acho que depois dessa cena, meu maior medo era do homem que eu mais amei na vida. Esse medo ainda corre ao meu lado, quando aparece cambaleando todas as noites cheirando a alcool. Medo de olhar pro seu par de olhos. "Dois olhos verdes da cor da fumaça (e o veneno da raça)". Pra ser sincera, acho que é medo de Ele nunca mais voltar a ser quem era. Era medo de quando minha amiga-irmã foi passar as férias em outro país e me deixou uma carta dizendo que se, acontecesse algo com ela, eu tinha autorização de ficar com tudo o que era dela. Eu não sabia que esse medo tomaria conta de mim durante o mês que ela ficou fora e que eu nunca torci tanto pela volta de alguém como eu torci pela dela. [...] Sinto que deveria dizer pra todas as pessoas o quanto elas me fazem ser, o quanto cada uma é única e essencial para mim, mas acho que ninguém entenderia. É medo que parece bobo. Medo é besteira para os outros, na maioria das vezes. Mas eu não vejo isso. Eu vejo como algo que eu não consigo lidar. Algo que impede meu sono todos os dias, como se fosse algo impossível de ser resolvido. Eu queria não tê-los. Não me venha com "você tem que viver a vida". Isso me dá medo, porque eu sei, que por mais que eu viva todos os instantes, que eu sinta todas as sensações e faça tudo para que seja memorável para mim (e para quem eu interferir por hora), um dia, não sobrará mais nada. E aí, o que eu vou dizer para meu medo? Que ele estava certo e que tudo não passa de grandes e eternas lembranças.

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