“Lá no fundo você é a mulher dos sonhos”
Talvez.
Não sei se ainda há motivos para acreditar no que ainda
posso ser. Lá no fundo? É estranho, difuso e complicado de entender. Ainda dá
tempo de ser alguma coisa? Mas, só lá no fundo? E aqui no raso? É difícil de
engolir e de aceitar.
Quiçá.
Joguei tudo o que já vivi ao vento, ao tempo, como aqueles
meninos do filme que assisti ontem à noite que jogaram algumas pedras ao mar e
torciam para que elas não afundassem de primeiro, mesmo sabendo que lá no
fundo, no fundo, no fundo mesmo, todas irão afundar.
Quem sabe.
Não quero saber de lá no fundo. Quero falar do ainda aqui.
Nesse corpo que mostro. Nessa pedra que carrego. No instante que a pedra sai da
minha mão. Eu me preparo. Eu calculei a força e a distância. Eu lembro de todas
as outras vezes que deram errado e ajeitei meu corpo para criar um ângulo ideal
para a tal pedra alcançar a perfeição do voo. Tentei escolher uma pedra que, ao
meu ver, tinha mais chances de flutuar.
Possivelmente.
Numa doce esperança, imaginei-a flutuando por muitos e
muitos dias. Quem dera anos. Eu estou aqui: nesse milésimo de segundo que
antecede o arremesso. Minha perna de apoio se dobra. A de impulso se estica.
Todo o meu corpo irá, agora, funcionar em razão a esta pedra que deposito toda
a fé que eu não tenho, e creio que ela irá voar sobre o mar realizando os meus
desejos mais genuínos.
Decerto.
Eu torço. Ainda que difícil. Apenas torço para que o vento
não atrapalhe o caminho, porque só depois de lançar eu lembro que não me
atentei à dinâmica do vento. Eu torço. Ainda que por instinto. Apenas torço
para que as ondas também não atrapalhem o caminho. É claro que pode não ser um
mar revolto. Mas que mar não é revolto de vez em quando?
Às vezes.
Não sei medir quantos mares podem se revoltar. Ainda torço.
Mas e o peso da pedra? Será que ela é tão leve quanto o necessário para seguir
viagem? Será que o mar irá aguentá-la? E a força que eu coloquei para atirá-la?
Talvez a pedra nem tenha saído da minha mão, mas eu já me enchi de
questionamentos.
Talvez.
Porque o ainda está agindo. Eu torço. Eu peço aos deuses,
mesmo não sabendo ao certo se há alguém lá em cima torcendo tanto quanto eu
pela pedra. Eu até tento ter fé, mas não sei a quem pedir por um milagre.
Porventura.
"Talvez eu ache algo mais forte, que faça eu me sentir
melhor. Depois do que eu já andei. Depois do que eu tenho que andar". Eu
me perdi. E me encontrei em referências musicais enquanto é “talvez”. Músicas me
acompanham neste momento de ilusão e ironia do tempo. São segundos entre a
pedra sair da minha mão, alcançar o mar e flutuar ou não por ali.
Por acaso.
A pedra saiu da minha mão. Eu me preparei. Dei o meu melhor.
Torci. Tive fé. Rezei todos os mantras, aos meus artistas favoritos – musicais e
literários. Eu acredito no talvez. No “talvez” aqui de fora, não lá do fundo.
Mas agora já não há mais nada que eu possa fazer:
eu sou a pedra.
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