Falta de memória

- Traga-me vinho, amor. Estou pronta para comemorarmos mais um ano que se inicia ao seu lado. Ah, como eu te amo. Como eu te quero. Como é boa minha vida com você. Sinto-me viva por idolatrar a eternidade junto de ti.
Não houve retorno de voz. Vera terminara de colocar seu par de brincos de ouro batido ao som de "se você disser que eu desafino amor, saiba que isso em mim provoca imensa dor".
Chegou a seu quarto com o entusiasmo a flor da pele e lindamente vestida para a virada do ano em Copacabana. Deparou-se com o corpo de seu marido, já vestido com aquele terno que acabara de comprar, deitado sob sua cama com as mãos juntas ao travesseiro. Dormia docemente, pensava Vera: - Como é lindo te olhar amor meu.

"- Segure minha mão filha, segure. Ande, antes que você não conheça meu marido.
. Mas minha senhora, seu marido não está aqui. Só está eu e meu primo aqui...estamos esperando nossa avó voltar do centro cirúrgico.
- Sem delongas, vamos."

- Amor, acorde. Está quase na hora, não quero perder a virada do ano. Pare, depois você volta e dorme.
E mais uma vez, sem retorno de voz. Vera passou as mãos em seus cabelos frios, seu rosto pálido e seus olhos sem respostas.

"-Por favor, não se vá. Volte para mim. Não me deixe, não posso viver sem você.
. A senhora está bem? Quer que eu chame a enfermeira?
- Sua tola, eu quero meu marido."

Vera partiu junto com ele naquele momento. Sua única razão, seu motivo maior se perdera. Ela deixou de viver. O luto durou anos. Durou tanto que, sem filhos nem parentes, contratou alguém para cuidar dela. Cada dia que nascia ela não se lembrava de mais nada. A única coisa que se lembrava era daquela virada do ano, e de pequenos marcos de sua infância.

"–Minha filha, eu vou embora. Vou encontrar o meu amor. Ele está me esperando com aquela taça de vinho. Por favor, coloque meus brincos enquanto toca essa musica.
- Tudo bem.
- Amor, estou indo, calma. Eu te amo, além de toda a eternidade."

Suas mãos seguraram as minhas até a hora em que não senti mais a sua firmeza. Não tinha pra quem ligar, não tinha família. E eu fiquei ali, a entender que tempo é esse que tira a memória das pessoas.
Terminei em vão e com a estranha sensação de ter que cumprir a idéia de não esperar o tempo para trazer-me as lembranças, mas sim, vive-las como se eu as fosse esquecer amanhã.

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